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SUPERENDIVIDAMENTO – A FRAGILIDADE DO CONSUMIDOR por CLÁUDIO SINOÉ ARDENGHY DOS SANTOS

27 de novembro de 2005.

SUPERENDIVIDAMENTO – A FRAGILIDADE DO CONSUMIDOR

CLÁUDIO SINOÉ ARDENGHY DOS SANTOS

Advogado Mestre em Processo Civil pela PUCRS
Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil
Membro da CDAP da OAB/RS

INTRODUÇÃO. 1. O conceito de supererindividamento. 2. A hipossuficiência do consumidor e a oferta em massa. 3. O sistema francês de proteção ao superendividamento. 4. O direito penal como forma de contenção da oferta enganosa. 5. A responsabilidade do Estado. CONCLUSÕES.

 

 

INTRODUÇÃO

Gosto do Direito, porque está presente até em uma caminhada. Numa das Sessões da CDAP fui até o centro e pela antiga Rua da Praia fui “panfleteado” de todos os jeitos, geralmente guardo os folhetos para colocar no lixo. Mas, desta vez, antes do ato simbólico resolvi ver do que tratavam. Todos, uns cinco, eram de pequenos empréstimos com envolvente atrativo: “Não olhamos se o seu CPF está cadastrado”. Outro: “Durma tranqüilo com suas dívidas pagas”. E para reforçar o destino dos papéis: “Compre o aparelho dos seus sonhos”, tudo por aí. Alguns davam preferência para os funcionários públicos, com desconto das parcelas no diretamente na fonte pagadora, baita facilidade... Estão todos no lixo.

Na volta eu “espichei” o ouvido e escutei dois rapazes que entregavam os folhetins, trocando as estatísticas de quantos clientes haviam conseguido, eram talvez comissionados.

Nos jornais também há anúncios e encartes. O dominical é uma festa das ofertas – obs: desculpem o meu sarcasmo, afinal é meu modo de escrever.

Ora.

Alguém já parou na Rua da Andradas e viu nossa população transeunte? Claro que vá realizar esta experiência despojado e não pegue o celular para papear, sob pena de surpresas, muito menos contar dinheiro. Se for uma moça, não fique parada, movimente-se. Caminhe entre uma chocolataria famosa até o shopping que é perpendicular à Caldas Júnior, uma vez, apenas uma vez.

O presente artigo estava “guardado”, até que, no sábado do dia 22, me ligam de uma financeira e oferecem um saque de R$ 1.500,00 e ainda crédito de R$ 10.000,00 numa determinada loja, o que realmente me irritou e deixou impressionado como anda selvageria na oferta no Brasil e foi um estímulo para escrever este artigo.

Essa introdução mostra porque a dívida externa do Japão quase se iguala à do Brasil e nossos juros ao FMI são monstruosos. Já escutei de um banqueiro – não bancário – banqueiro, que ele fixava as taxas de juros diárias de um financiamento de acordo com o primeiro número que vinha à cabeça. Taxas de mercado chanceladas, inclusive por algumas turmas de nosso Superior Tribunal de Justiça, pela “liberdade de contratar”.

Para finalizar a introdução, o artigo trata de pequenos contratos, o que prejudica um visão geral, dada a variedade de bens de consumo e suas conseqüências (financiamentos habitacionais com saldos corrigidos que tornam o valor final muitas vezes superior ao do imóvel, etc)., o que oportunamente será tratado em artigo específico.

1. O Conceito de Superendividamento

A pessoa deve ser vista do ponto de vista contábil, econômico e atuarial. Juridicamente é uma fonte de direito e obrigações. Só que estas últimas encontram uma definição mais precisa dentro das duas primeiras ciências.

Defino superendividamento como: a situação em que a pessoa física tem o seu ativo circulante (rendas) inferior aos valores devidos aos seus credores (a curto e a longo prazo), deixando um passivo a descoberto. Independentemente de seu imobilizado (bens imóveis). Capazes de influir na manutenção de suas despesas mais básicas em sua subsistência. Sendo vista pelo regime contábil de competência, onde se antecipam os encontros de receitas e despesas, mesmo não ocorrendo o recebimento e o vencimento destas últimas num determinado período.

O superendividamento pode ocorrer por diversas formas: casos fortuitos (perda de emprego, doenças, separações entre casais, aplicações mal-sucedidas) ou simplesmente descontrole das contas do tomador, prejudicando o adimplemento de despesas rotineiras, como aluguel, luz, água, condomínio, impostos e as receitas previstas: salários, rendas e outras fontes esperadas (as quais podem se transformar em créditos de liquidação duvidosa, não merecendo adentrar ao conceito exposto), que compõem o resultado num lapso temporal.

Economicamente, há a taxa de atratividade, a qual reflete onde o capital deve ser aplicado para melhor render frutos. Quanto maiores forem as vantagens, maiores serão os riscos (ex. aplicações em bolsa de valores) e a segurança hoje fica nos investimentos bancários corriqueiros: poupanças, etc.

Ocorre que, no mercado brasileiro, as aplicações seguras ficam a desejar em contrapartida nas taxas de mercado utilizadas pelos bancos na obtenção do crédito por meio de financiamentos ou outras formas. O que faz ocorrer o fenômeno denominado de superávit a estes e aqueles o déficit. Evidentemente que a balança pende em favor das instituições financeiras que obtém superávits violentos, inflacionando e desequilibrando o mercado e fator de vida pessoal da população e de um País.

Sobre tributos, receitas do estado, não há um estudo aprofundado entre o poder do cidadão para enfrentá-los. Hoje vem surgindo corrente no sentido que os tributos têm caráter de sanção[1].

Nos litígios em que as partes procuram equilibrar as prestações, é na hora da liquidação que pode acontecer o fenômeno do superendividamento e a doutrina não se debruça com a devida profundidade sobre esta fase processual tão delicada, deixando ao léu fatos nocivos inclusive contra o vencedor da contenda. Aí complemento a definição que o superendividamento pode sim adentrar o imobilizado pessoal.

A correção monetária é outro problema, pois os índices utilizados ultrapassam muitas vezes o valor real da moeda na sua correção, eis que capitalizado e muitas vezes não refletem a realidade econômica.

Somando juros, correção monetária e multas uma dívida se torna impagável, fora da realidade descrita nos órgãos de imprensa. O executivo é um dos grandes responsáveis desse fenômeno chamado superendividamento.

2. A hipossuficiência do consumidor e a oferta em massa.

As ofertas de bens e créditos passam sem nenhum controle do Estado. Os consumidores são hipossuficientes. Até em processos judiciais vejo os peritos em seus laudos técnicos cometerem erros de jaez profundo. Imaginem o cidadão sem técnicas de planejamento de seu crédito...

Quando me deparo com anúncios de que um bem pode ser parcelado em 4 vezes mensais pelo preço à vista, logo penso: não há o preço à vista!

É um engodo criminoso. O chamado “preço à vista” já vem embutido de juros. Não há quem compre nestas condições o bem pelo seu preço real, o que induz ao consumidor parcelar, mas fazer essa fragmentação é nociva no balanço mensal, quando do encontro de receitas e despesas, muitas vezes caindo nos limites de cheque especial ou no pagamento mínimo das faturas de cartões de crédito, o que faz, sobremaneira, uma operação surrealista. São juros sobre juros.

A oferta em massa não fica na redoma de panfletos e anúncios em periódicos, surge a internet. As caixas postais eletrônicas hoje são alvo direto de oferta e anúncios, quem não teve a paciência de ter de “apagar” estes “panfletos eletrônicos”? E fico observando a questão dos contratos eletrônicos, matéria bem tratada por JONABIO BARBOSA DOS SANTOS:

No comércio eletrônico internaútico, considera-se feita à oferta no momento em que os dados disponibilizados pelo empresário em seu website ingressam no computador do consumidor ou adquirente. A aceitação, por sua vez, verifica-se quando os dados transmitidos pelo comprador ou adquirentes ingressam nas maquinas do empresário, informações que podem ser constatados através do protocolo de internet das partes que fica armazenado nas maquinas intervenientes.
(...)
Portanto, para eficácia da relação jurídica contratada de forma eletrônica, basta a existência de vontade livre de qualquer vicio, social ou de consentimento e que o objeto contratado seja licito e possível, mesmo não havendo qualquer menção expressa ou especifica da Lei ou das Leis em vigor sobre a validade do contrato eletrônico, pois em matéria contratual e em Direito Civil, principalmente, o que não é proibido é permitido.”[2]

CLÁUDIA LIMA MARQUES ensina que:

Uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por outros métodos agressivos de venda, em suma, uma vontade racional. Não há como negar que o consumo massificado de hoje, pós-industrial, está ligado faticamente a uma série de perigos para o consumidor, vale lembrar os fenômenos atuais de superendividamento, de práticas comerciais abusivas, de abusos contratuais, da existência de monopólios naturais dos serviços públicos concedidos ou privatizados, de falhas na concorrência, no mercado, na informação e na liberdade material do contratante mais fraco na elaboração e conclusão dos contratos. Apesar de todos estes perigos e dificuldades, o novo direito contratual visa concretizar a função social dos contratos, impondo parâmetros de transparência e boa-fé." [3]

O que impera salientar é que o mercado de oferta de produtos e serviços não participa somente disto, dentro de lojas há uma financeira a postos, ou são gerados sistemas próprios de crediários, onde pode se parcelar em mais vezes. Nas primeiras parcelas o preço do produto já é alcançado e no sistema de financeiras, imediatamente contabilizado – o preço é pago ao estabelecimento. Fica o consumidor vinculado a uma instituição diversa que a loja, a qual já recebeu integralmente o valor do bem e nenhuma importância há em relação à fomra como conseguiu vender ou situação pessoal do adquirente. Regra do jogo: lucro.

O aspecto psicológico do consumo é abordado pelo GRUPO DE PSICOLOGIA ECONÔMICA (G.P.P.E), coordenado pela Dra. ALICE MOREIRA. Dentre suas conclusões vale transcrever a que segue:

O interesse dos psicólogos por temas relacionados à vida econômica é compreensível no panorama contemporâneo, marcado pela transformação de valores, estabelecimento de novos mercados e tendências globalizantes. A ética da poupança e auto-contenção foi superada por valores de consumo e satisfação imediata dos desejos, gerando o que tem sido chamado de “cultura do débito” (Livingstone & Lunt, 1993). As identidades sustentam-se cada vez mais na posse e exibição de bens materiais (Belk, 1991; Canclini, 1999 ). Crescem as preocupações com a patologia do comprar compulsivo (Hanley & Wilhelm, 1992), em paralelo ao estudo das mais antigas, como jogar e colecionar (Belk, 1995; Griffiths, 1995). A participação crescente da mulher no mercado de trabalho leva à reestruturação das relações e estratégias de poder na família (Burgoyne, 1995; Kirchler, 1999). Novas configurações de mercado geram estudos abordando a influência dos valores sobre preferências de consumo (Grunert & Beckmann, 1999) ou as interrelações entre moeda, simbolismo e identidade nacional (Conlon, Routh, & Pannayiotakopoulo, 2000).”[4]

Sobre o artigo encontrado no site www.msn.com.br: MITOS QUE PODEM SEPARAR UM CASAL, acesso em 24 de outubro de 2005, separei a seguinte frase:

A vida a dois certamente é algo que exige muito esforço e comunicação. E, não raro, casamentos terminam por causa de conflitos financeiros. Ainda que seja extremamente importante que o casal estabeleça uma estratégia para gerenciar suas finanças, também é importante manter uma relação saudável.

Somando todos esses aspectos, vemos que o superendividamento é um terreno movediço, perigoso e preenchido pela população consumista de maneira impensada, mas trabalhada pelos meios de oferta com o fito de maior circulação de bens independente dos resultados aos consumidores.

3. O sistema francês de proteção ao superendividamento

Interessante que os sistemas estrangeiros já notaram esse fenômeno, inclusive legislaram para controlar essa situação que pode, sobremaneira, afetar a vida das pessoas como toda uma economia[5]. No presente artigo, daremos primazia ao sistema Francês, pelas suas peculiaridades.

O Code de la consommation, artigo L.313-12, estabelece:

Section 4 : Délais de grâce
Article L313-12
      Lexécution des obligations du débiteur peut être, notamment en cas de licenciement, suspendue par ordonnance du juge d instance dans les conditions prévues aux articles 1244-1 à 1244-3 du code civil. L ordonnance peut décider que, durant le délai de grâce, les sommes dues ne produiront point intérêt.      En outre, le juge peut déterminer dans son ordonnance les modalités de paiement des sommes qui seront exigibles au terme du délai de suspension, sans que le dernier versement puisse excéder de plus de deux ans le terme initial ment prévu pour le remboursement du prêt  ; il peut cependant surseoir à statuer sur ces modalités jusqu au terme du délai de suspension.

Remetendo aos artigos 1244-1 ao 1244-3 do Code Civil:

Article 1244-1
(inséré par Loi nº 91-650 du 9 juillet 1991 art. 83 Journal Officiel du 14 juillet 1991  en vigueur le 1er août 1992)

      Toutefois, compte tenu de la situation du débiteur et en considération des besoins du créancier, le juge peut, dans la limite de deux années, reporter ou échelonner le paiement des sommes dues.

 

Par décision spéciale et motivée, le juge peut prescrire que les sommes correspondant aux échéances reportées porteront intérêt à un taux réduit qui ne peut être inférieur au taux légal ou que les paiements s imputeront d abord sur le capital.  En outre, il peut subordonner ces mesures à l accomplissement, par le débiteur, d actes propres à faciliter ou à garantir le paiement de la dette.
      Les dispositions du présent article ne s appliquent pas aux dettes d aliments.
Article 1244-2
(inséré par Loi nº 91-650 du 9 juillet 1991 art. 83 Journal Officiel du 14 juillet 1991  en vigueur le 1er août 1992)

      La décision du juge, prise en application de l article 1244-1, suspend les procédures d exécution qui auraient été engagées par le créancier. Les majorations d intérêts ou les pénalités encourues à raison du retard cessent d être dues pendant le délai fixé par le juge.
Article 1244-3
(inséré par Loi nº 91-650 du 9 juillet 1991 art. 83 Journal Officiel du 14 juillet 1991  en vigueur le 1er août 1992)

      Toute stipulation contraire aux dispositions des articles 1244-1 et 1244-2 est réputée non écrite.

Vendo os artigos em tela, podemos inferir que, em determinadas situações, há um “período de graça” para o devedor solver suas obrigações. O juiz de instância, frente às peculiaridades do caso concreto, pode conceder uma moratória civil,  pelo prazo de dois anos, suspendendo todas as execuções contra o devedor. O artigo 1244-3 do Code Civil é categórico: nos contratos a parte não pode abrir mão do benefício, sendo considerada como cláusula não-escrita, Não abarcadas no plano de contas as parcelas alimentares (1244-1, in fine).

Sobre as somas devidas não incidem juros e a decisão deve ser fundamentada, sendo que o requerimento deve expor os fatos e circunstâncias bem como o valor a ser suspenso (segue modelo abaixo).

Durante a suspensão, deve haver um plano de contas para o pagamento das dívidas, eis que, no final, o somatório pode manter o consumidor na mesma situação, procrastinando assim a liberação de suas obrigações. “O plano é solicitado pelo devedor e pode conter: abatimento ou redução de juros, remissão de valores, consolidação ou substituição de garantias e formas de sua execução. Caso o devedor não preencha os requisitos ou em 60 dias não se chegue a um acordo pode-se iniciar a insolvência. Como no caso da Diretiva do Conselho, a lei francesa prevê uma aplicação estrita e estreita  do conceito de consumidor.”[6]

4. O direito penal como forma de contenção da oferta enganosa

Em nenhum panfleto pude ver os juros mensais, os juros reais, o montante final em empréstimos de R$ 500,00 a R$ 3.000,00. Realmente, dá para pagar as contas e dormir feliz. Na verdade os panfletos e outros meios de oferta são ilegais, porque o nosso Código do Consumidor estabelece:

Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:
I - preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;
II - montante dos juros;
III - acréscimos legalmente previstos;
IV - número e periodicidade das prestações;
V - soma total a pagar, com e sem financiamento.

E nos crimes contra o consumidor:

Art. 69. Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade:
Pena - Detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses ou multa.

Como se trata de tipo penal, faço um aprofundamento maior deste artigo. Utilizo uma obra de tomo, que é marco neste ramo do direito, do ilustre JOÃO BATISTA DE ALMEIDA, na “Proteção jurídica do consumidor”:

Omissão na organização de dados (art.69)
Objeto jurídico: os direitos do consumidor de informação adequada, proteção contra a publicidade enganosa e abusiva e reparação de danos patrimoniais e morais (art. 6º, III, IV e VI).
Sujeito ativo: o fornecedor que se utiliza da publicidade de seus produtos ou serviços e que tem o dever legal de organizar tais dados (art. 36, parágrafo único[7
).
Sujeito passivo: o consumidor difusamente considerado e aquele interessado nos dados organizados pelo fornecedor.
Tipo objetivo: o descumprimento da norma contida no parágrafo único do art.36, instituidora do dever de manter o fornecedor, em seu poder, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem, para informação dos legítimos interessados. Pune-se a conduta omissiva  de não organizar tais dados, lesiva aos interesses dos consumidores.
Tipo subjetivo: o dolo, consistente na vontade livre e consciente de não fazer, de não providenciar a organização dos dados. Inexiste punição a título de culpa.
Consumação: no momento em que deveriam ter sido organizados os dados e não o foram. Não se admite a forma tentada (crime omissivo próprio).”[8]

No crime omissivo “(omissivo puro) ocorre exatamente o contrário, simbolizando-se o atuar típico em um non facere, uma inação tipificada na norma penal. Aqui, a simples omissão do dever, realiza um injusto típico, não se tornando necessário o surgimento de qualquer resultado.”[9] por desobediência à norma. O que ao nosso ver transforma o delito em comissivo por omissão eis que a conduta negativa é positiva, há o animus de silenciar-se sobre os dados e desatendimento à norma.

Em relação ao sujeito ativo, o estabelecimento comercial e em caso de financeira dentro de seus domínios, ou mesmo setor de crediário onde se realizam os contratos, ambos são sujeitos ativos do delito, devendo cada qual responder por sua participação na realização do evento.

5. Responsabilidade do Estado.

A bem da verdade, é interessante às financeiras e afins que o consumidor pague parte da dívida e atrase o resto. O que é contabilizado como prejuízos pode amanhã se tornar um resultado extraoperacional. E a forma de coação é simples: cadastrar o consumidor nos bancos de dados (SERASA, SPC e afins). Entrementes, uma leitura mais profunda do artigo 44 da Lei 8078/90:

Art. 44. Os órgãos públicos de defesa do consumidor manterão cadastros atualizados de reclamações fundamentais contra fornecedores de produtos e serviços, devendo divulgá-lo pública e anualmente. A divulgação indicará se a reclamação foi atendida ou não pelo fornecedor.

Da mesma forma que existem cadastros de inadimplentes, há o cadastro de fornecedores e serviços, que deve ser publicado anualmente, ou melhor, divulgado anualmente pelos sistemas de proteção ao consumidor (PROCONS e afins).

A norma é de ordem pública e sua omissão pode gerar responsabilidade do Estado pela inação de seu poder de polícia, bem definido por JUAREZ FREITAS:

o exercício de um poder-dever subordinado aos princípios superiores regentes da Administração Pública, que consiste em restringir ou limitar, de modo gratuito e sobretudo preventivo, a liberdade e a propriedade, de maneira a obter, mais positiva do que negativamente, uma ordem pública capaz de viabilizar e de universalizar a coexistência das liberdades.[10]

Existente uma reclamação fundamentada e, não havendo divulgação anual, o Estado estará se omitindo de um dever Constitucional, podendo ser responsabilizado por danos que este venha a causar, pois compete, nos termos do artigo 24 da CF/88:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
V - produção e consumo;
VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
E o parágrafo 6º do artigo 37 da CF/88:
Artigo 37:
§ 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Já foi dito por JOSÉ CRETELLA JÚNIOR que:

‘Embora apoiando-se em objetos, do mundo material ou imaterial, o homem tem acima de si um ou vários mundos de outra natureza, sistemas construídos, de natureza espiritual-cultural, que lhe dão segurança e estabilidade e lhe possibilitam a existência do corpo e espírito.
Mesmo ao apoiar-se sobre objetos naturais, sente o ser humano a imperiosidade de invocar uma série de princípios sob os quais vive.
A esta ordenação harmônica, organizada, que possibilita a coexistência dos seres humanos, separando-os em categorias regidas por sistemas morais, religiosos, filosóficos, culturais, econômicos, jurídicos, procura o homem filiar-se, abdicando desta ou daquela aspiração, em prol da proteção maciça oferecida pelo sistema.’ [11]
Sempre que o órgão não arquivar as reclamações dos consumidores, não atualizar as informações constantes do arquivo, não fizer sua divulgação anual ou fazendo-a de maneira inadequada, pode o consumidor, judicialmente, abrigá-lo a tal.
Aplica-se, aqui, in totum, o artigo 22, parágrafo único:
Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.[12]

O problema ficaria com a definição de dano pela omissão de fiscalização na transparência dos contratos. Percuciente é a observação de PAULO ROBERTO RIBEIRO NALIN:

De certa forma, verossímil que a perenidade de um conceito de dano estaria relacionada à própria extensão inversa dos elementos que tenta abraçar. Assim, quanto mais sintético o enunciado mais genérico seria, englobando valores ora conhecidos e futuros, materiais ou não. Convincente seria afirmar ser dano, simplesmente, a ofensa a interesse alheio, cuja posição é defendida pelo saudoso Clóvis do Couto e Silva, aludindo à noção de interesse violado. Com tal conceito, inclina-se a configuração mais moderna de dano, cuja extensão não mais quer dizer prejuízo, na medida em que a ofensa implica na alteração de uma situaçãofavorável. É este o seu exato conteúdo para fins não limitativos entre danos patrimoniais e não patrimoniais.[13]

Em síntese: qualquer demonstração de superendividamento decorrente de falta de fiscalização dos contratos pelos entes responsáveis na falta de seu exercício de poder de polícia poderia gerar uma situação caótica de responsabilidade da Administração direta e indireta. Uma situação teratológica, mas como compelir que entes como o PROCON divulguem publicamente as empresas reclamadas por desobediência aos primados elencados no Código de Defesa do Consumidor? Há os legitimados para tanto e elencados nos incisos do artigo 82, inclusive a própria Administração... Uma aporia insustentável que faz com que os órgãos, associações de defesa do consumidor e o Ministério Público sejam mais atuantes neste engendro legal.

CONCLUSÕES

1) É possível pincelar um problema de ordem mundial. Os países mais desenvolvidos já tomaram providências para evitar o fenômeno do superendividamento;

2) O Código do Consumidor Brasileiro é um dos diplomas legais mais aperfeiçoados do mundo, sendo paradigma para outros sistemas, o que lhe falta é atenção por parte das autoridades públicas;

3) Superendividamento é: a situação em que a pessoa física tem o seu ativo circulante (rendas) inferior aos valores devidos aos seus credores (a curto e a longo prazo), deixando um passivo a descoberto. Independentemente de seu imobilizado (bens imóveis). Capazes de influir na manutenção de suas despesas mais básicas em sua subsistência. Sendo vista pelo regime contábil de competência, onde se antecipam os encontros de receitas e despesas, mesmo não ocorrendo o recebimento e o vencimento destas últimas num determinado período.

4) O superendividamento pode levar o consumidor a ter seu patrimônio imobilizado para solver dívidas.

5) Não se quer que o Estado pague as dívidas do cidadão, o que fica flagrante é a hipossuficiência marcante do povo brasileiro no controle de suas contas, tanto no aspecto jurídico como psicológico, pelo mercado feroz e impensado que o atinge.

6) O superendividamento não marca somente o consumidor, mas a própria coletividade e é capaz de desequilibrar a balança econômica de um país.

7) Não bastam transparência e boa-fé contratuais, há a necessidade política imediata para a conscientização da massa populacional sobre sua capacidade financeira, bem como lembretes de que a cada ano valores utilizados em bens podem carecer nas responsabilidades corriqueiras;

8) O Estado tem todos os instrumentos para esse controle e permanece omisso, podendo ser responsabilizado e coagido a buscar essa consciência e controle no consumo;

9) Não se está a pregar um enxugamento consumista capaz de gerar uma contrapartida como bancarrota de empresas de produtos e serviços, mas inserir neste contexto o princípio do razoável e da verdadeira livre vontade consumerista.

10) Não há estudo sobre o impacto de juros, multas, correção monetária e sentenças judiciais no mercado financeiro no País. Nenhum índice segue o princípio da legalidade e as instituições financeiras abarrotadas de resultados positivos realizam um acúmulo de moeda e bens pelas errôneas informações inflacionárias dadas pelo Executivo e chanceladas pelo Judiciário, destoando da realidade e causando atrito, com presentes e futuras conseqüências nefastas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor, São Paulo: Ed. Saraiva, 1993.

BENJAMIN, Antônio Hermann de Vasconcelos. Código Brasileiro de defesa do consumidor, 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de Direito Administrativo,  Forense, 1a ed., 1966.

FREITAS, Juarez. Estudos de direito administrativo, 2a ed., rev. e aument., São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1997.

LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento – uma problemática geral, in Direito do Consumidor n 17, janeiro/ março de 1996, São Paulo: Ed. RT

MARQUES, Claúdia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2002.

MOREIRA, Alice.  O que é psicologia econômicaLAPE, Belém/PA. Disponível em:< http://www.cpgp.ufpa.br/lape/portug/contato.htm > Acesso em: 24  out.  2005.

NALIN, Paulo Roberto Ribeiro. Responsabilidade Civil: Descumprimento do Contrato e Dano Extrapatrimonial. Curitiba: Juruá, 1996.

SANTOS, Barbosa dos Santos. Contratos eletrônicos no direito brasileiro - (Publicada no Juris Síntese nº 46 - MAR/ABR de 2004).

TUBENCHLAK, James. Teoria do crime – o estudo do crime através de suas divisões, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1978.



[1] Diz o CTN: “Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”

[2] SANTOS, Barbosa dos Santos. Contratos eletrônicos no direito brasileiro - (Publicada no Juris Síntese nº 46 - MAR/ABR de 2004).

[3] MARQUES, Claúdia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2002.pp.590-591.

[4]MOREIRA, Alice.  O que é psicologia econômicaLAPE, Belém/PA. Disponível em:< http://www.cpgp.ufpa.br/lape/portug/contato.htm > Acesso em: 24  out.  2005.

[5] O governo britânico mantém uma página especial sobre o Consumer Credit Act reformulado para Consumer Credit Bill: http://www.dti.gov.uk/ccp/topics1/consumer_finance.htm onde podem ser vistas as novidades e esclarecimentos à população inglesa.

[6] LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento – uma problemática geral, in Direito do Consumidor n 17, janeiro/ março de 1996, São Paulo: Ed. RT.p.60.

[7] Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.

Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.

[8] ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor, São Paulo: Ed. Saraiva, 1993, pp.136-137.

[9] TUBENCHLAK, James. Teoria do crime – o estudo do crime através de suas divisões, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1978, p.99.

[10] FREITAS, Juarez. Estudos de direito administrativo, 2a ed., rev. e aument., São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1997, p.61.

[11] CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de Direito Administrativo,  Forense, 1a ed., 1966, p.336

[12] BENJAMIN, Antônio Hermann de Vasconcelos. Código Brasileiro de defesa do consumidor, 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, pp.427-428.

[13] NALIN, Paulo Roberto Ribeiro. Responsabilidade Civil: Descumprimento do Contrato e Dano Extrapatrimonial. Curitiba: Juruá, 1996, p.86.

 

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