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STF suspende ação de juiz contra advogada por desacato

27 de setembro de 2005.

Bate-boca

STF suspende ação de juiz contra advogada por desacato

por Leonardo Fuhrmann

 

O ministro Gilmar Mendes, do STF, concedeu uma liminar que suspendeu a ação criminal contra a advogada Alessandra Silva Tamer Soares, acusada pelo juiz da 4ª Vara Criminal Central de São Paulo de desacato. A tramitação da ação penal, pela decisão, ficará suspensa até o julgamento de mérito do Habeas Corpus.

 

Alessandra discutiu com o juiz nos corredores do fórum depois que ele determinou que fossem extraídas cópias dos autos para apuração do crime de falso testemunho por parte das testemunhas e uma suposta participação da advogada na coação destas testemunhas.

 

Segundo o termo circunstanciado, a advogada teria dito ao juiz que ele “estava brincando com as pessoas” e que ela “iria procurar o lado dela em defesa de seus interesses”. O pedido de Habeas Corpus havia sido negado pela 2ª Turma do Colégio Recursal Criminal do Estado de São Paulo.

 

Para o ministro, a jurisprudência daquela corte é clara no sentido de que “o elemento subjetivo do desacato é a vontade livre e consciente de agir com a finalidade de desprestigiar a função pública do ofendido”.

 

Na defesa da advogada, a Secção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil alegou que apesar das expressões depreciativas que foram usadas por Alessandra, tais termos só “demonstraram a revolta e indignação momentânea da advogada em razão da injusta acusação de participação em supostos crimes de coação no curso do processo ou falso testemunho”.

 

Segundo o advogado Renato Martins, nomeado pela OAB-SP para defender Alessandra, o problema aconteceu porque as testemunhas não reconheceram em juízo os acusados de participar de um assalto. Os réus haviam sido reconhecidos pelas testemunhas na polícia.

 

Leia a integra da inicial do pedido de Habeas Corpus

 

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Presidente do Egrégio Colégio Recursal Criminal da Capital,

 

Ordem dos Advogados do Brasil Secção São Paulo, neste ato representada pelos advogados Claudia Maria Soncini Bernasconi, Renato Marques Martins e Otávio Margonari Russo, devidamente qualificados nas procurações anexas, respeitosamente vem à presença deste Egrégio Colégio Recursal, com fulcro no art. 5º, inc. LXVIII, da Constituição Federal da República e nos artigos 647 e seguintes do Código de Processo Penal, impetrar ação de

 

habeas-corpus

 

com pedido de liminar, em favor de Alessandra Silva Tamer Soares, advogada regularmente inscrita nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil Secção São Paulo sob o nº 204.569, ilegalmente coagida nos autos do procedimento criminal nº 050.04.070609-5, cujo trâmite se dá perante o Juizado Especial Criminal da Capital, conforme demonstrar-se-á a seguir.

 

Dos fatos.

 

A paciente é advogada e como tal defendeu o réu Eduardo dos Santos Rodrigues, acusado de tentativa de roubo nos autos da ação penal nº 050.04.003446-1, cujo trâmite se deu perante o meritíssimo Juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca da Capital.

 

Este habeas corpus não tem como escopo a tentativa de roubo apurada naqueles autos.

 

Entretanto, já decidiu o egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, nos autos da Apelação nº 266.001, cujo voto é da lavra do eminente Desembargador Jarbas Mazzoni que, é “mister que se tenha em conta as circunstâncias que o levaram a proferir as expressões tidas como ofensivas.”[1]

 

Assim, imperioso historiar, mesmo que sucintamente, aqueles acontecimentos ¾ posto que indissociáveis do suposto desacato do qual é injustamente acusada a paciente ¾, de forma a permitir ao julgador uma melhor compreensão da tese jurídica que ora se quer ver acolhida. Pois veja-se.

 

Em síntese, consta daqueles autos que o réu Eduardo, juntamente com o adolescente Rodrigo, teriam subtraído um veículo Kombi da vítima Valdomiro Pereira Lima Neto, a qual realizava consertos na rede elétrica juntamente com as testemunhas Daniel José de Souza, Daniel Moreira Cavalheiro e Fábio de Souza Ferreira.

Acionada a polícia, momentos depois da subtração, teria o réu Eduardo sido preso, juntamente com o menor Rodrigo, em posse da res furtiva, ocasião em que o inimputável teria realizado disparo de arma de fogo contra os policiais.

 

Na fase extrajudicial, vítima e testemunhas reconheceram “sem sombra de dúvidas” Eduardo e Rodrigo como os autores do crime.

 

O réu Eduardo já no flagrante nega os fatos, apresentando versão de que teria sido contratado pelo menor para retirar o motor do veículo furtado, vez que mecânico de profissão. O réu Eduardo ainda sustenta em seu interrogatório extrajudicial, que teria sido apontado pelos policiais como o autor do roubo em razão de já ter passagem pela polícia. Tal versão foi confirmada pelo inimputável ainda e já no flagrante.

 

Contudo, em juízo, vítima e testemunhas de acusação não só não reconheceram o réu Eduardo como sendo o autor do crime como negaram veementemente tivessem-no reconhecido na Delegacia de Polícia, absolutamente ao contrário do quanto constante de seus depoimentos no Auto de Prisão em Flagrante.

 

Em síntese, vítima e testemunhas disseram ter procurado não olhar para o rosto dos assaltantes, de certo por medo. Disseram que na delegacia dois presos de cabeça baixa foram apresentados como os autores do crime, mas que não tinham certeza suficiente para o reconhecimento. De qualquer forma, a autoridade policial preparou um “modelo” de depoimento para todos, os quais foram assinados sem a devida leitura.

 

Há registro de incidente na audiência. Uma das testemunhas, primeiro ouvida equivocadamente como vítima, foi vista conversando com uma pessoa do lado fora da sala de audiências. Como tal pessoa era cunhada do réu, acusação e magistrado decidiram ouvir de novo tal pessoa, desta vez como testemunha, ocasião em que ratificou que não reconhecia o réu Eduardo como o autor do crime, ao contrário do que havia constado na fase extrajudicial.

 

Ao sentenciar aquele processo, o Magistrado determinou a extração de cópias e remessa à Delegacia de Polícia para instauração de inquérito policial visando a apuração dos crimes de coação no curso do processo e falso testemunho eventualmente praticados pela vítima e testemunhas, “sem prejuízo de ser apurada a eventual participação ou não da advogada Dra. Alessandra Silva Tamer Soares, OAB/SP nº 204.569, na prática dos apontados ilícitos, além de outros que possam ser verificados no curso das investigações.” g.n..

 

A advogada e ora paciente dirigiu-se ao respectivo cartório para tomar ciência da respeitável Sentença. Foi surpreendida com a determinação judicial de que fosse investigada em inquérito policial pela prática dos crimes de coação no curso do processo e falso testemunho, o que lhe causou revolta e indignação ante a injustiça da medida.

 

Transtornada, perturbada ao deparar-se com a injusta acusação de prática de crimes, a paciente encontrou o Magistrado no corredor do fórum, momento em que manifestou sua indignação, dizendo ao juiz que ele “estava brincando com a vida das pessoas na sua sentença e que ela iria procurar o lado dela para defesa dos seus interesses”.

 

Tal manifestação fora entendida pelo magistrado como desrespeitosa à sua função, dando azo à lavratura de Termo Circunstanciado por desacato objeto deste writ, nos seguintes moldes:

 

“Às 14:30 horas, do dia 22 de setembro de 2004, eu me encontrava exercendo as minhas funções como magistrado junto à 4ª Vara Criminal Central da Capital, quando me retirei para me dirigir até o setor de armas e objetos apreendidos do DIPO, quando tive a minha atenção despertada pela advogada de nome Alessandra Silva Tamer Soares, OAB/SP nº 204.569, a qual se dizia inconformada com uma sentença minha, onde determinei que se extraíssem cópias para a apuração de eventual crime de falso testemunho por parte de testemunhas e eventual participação da advogada. Na oportunidade, tentei acalmar a parte, mas ela alterou o seu tom de voz e, no meio do corredor, onde havia várias pessoas passando, passou a fazer críticas contra a minha pessoa, dizendo que eu estava ‘brincando com as pessoas’ na minha sentença e que ela iria procurar o lado dela para defesa dos seus interesses. Em face do tom de voz desrespeitoso e do local em que o fato ocorreu, ou seja, nos corredores do Fórum, mandei que a advogada parasse, pois do contrário iria dar voz de prisão a ela. A patrona disse que se eu a estava prendendo eu estava cometendo um abuso de autoridade, momento em que dei voz de prisão e solicitei o concurso de policiais militares que atuavam na segurança interna do Fórum. na presença dos policiais, a patrona voltou a repetir a frase desrespeitosa de que eu estava brincando com as pessoas através da minha sentença. A advogada foi convidada até minha sala...”, g.n..

 

 

Eis a síntese necessária dos fatos.

 

 

Do direito.

 

Do Cabimento/ Da análise de prova em habeas corpus

 

Inicialmente, cumpre colacionar aresto do Supremo Tribunal Federal avalizando o habeas corpus como meio idôneo para a verificação da ocorrência específica de crime de desacato, quando a análise puder se fundar nos fatos narrados na própria denúncia:

 

“No habeas corpus não se torna possível o exame aprofundado de provas para que se possa verificar a inexistência de justa causa para a ação penal. Entretanto, é possível, ante os próprios termos da peça acusatória, examinar-se se nela se contém a exposição de fatos que possam constituir crime.”[2]

 

Mutatis mutandis, no presente caso deve ser feito o mesmo com o Termo Circunstanciado acima transcrito, lavrado pela douta autoridade vítima, no qual consta que a paciente teria dito ao magistrado vítima que ele “estaria brincando com a vida das pessoas na sua sentença e que ela iria procurar o lado dela para defesa dos seus interesses”.

 

Pois bem. Não agiu a paciente nem com o dolo nem com o ânimo calmo exigidos para a configuração do delito, conforme se vê da remansosa jurisprudência abaixo colacionada.

 

O desacato tem como elemento subjetivo o dolo específico consistente na intenção ultrajante, no propósito de depreciar, vexar, desprestigiar a função pública do ofendido.

 

Para Magalhães Noronha: “Não existe desacato sem a intenção de ofender ou desprestigiar a função. ... não constitui o crime a crítica ou censura justa, conquanto incisiva. Não comete o crime quem, embora de modo enérgico, mas não ultrajante, diz a funcionário que, agindo daquela maneira, ele está errado. Condizem perfeitamente com os interesses sociais e com as finalidades da própria administração, a fiscalização e crítica do indivíduo e da coletividade.”[3] 

 

É comum testemunhas retratarem-se em Juízo, onde encontram ou pelo menos deveriam encontrar a autoridade garantidora do magistrado, longe da pressão coercitiva ¾ quando não torturadora ¾ da polícia e ante ao contraditório exercido pela defesa e acusação. 

 

Não é porque o magistrado suspeita da ocorrência de falso testemunho que, necessariamente, a advogada militante nos autos participou de tal crime. Não havendo nenhum mínimo elemento sequer apontando o envolvimento da causídica nos supostos fatos, falta justa causa para sua submissão a inquérito policial, sendo, portanto, tal determinação, ilícita.

 

Assim, a manifestação de sua indignação contra a injusta acusação feita pelo magistrado revela contornos de uma legítima defesa da honra pessoal e profissional da advogada. Não revelam, de nenhuma forma, intenção de desprestigiar o cargo.

 

Mesmo que se possa tomar as expressões feitas pela paciente como depreciativas, posto que esta teria dito que o magistrado estaria “brincando” com a vida das pessoas na sua sentença, não eram dotadas da intenção de ofender o cargo em questão, apenas demonstraram a revolta e indignação momentânea da advogada em razão da injusta acusação de participação em supostos crimes de coação no curso do processo ou falso testemunho.

 

Revista Consultor Jurídico, 26 de setembro de 2005

 

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